Porque é que precisamos de parar de achar que um canil sobrelotado é melhor que a liberdade
Todos nós já sentimos aquele aperto no coração. Vemos um cão a deambular na berma da estrada ao fim de semana, aparentemente sozinho, e o nosso primeiro instinto é: “Temos de o tirar dali. Temos de o salvar.” Ligamos para as associações, chamamos o canil municipal, fazemos de tudo para que aquele animal entre no sistema.
Acreditamos, genuinamente, que estamos a garantir o seu bem-estar. Mas hoje, convido-vos a fazer uma pergunta difícil, daquelas que incomodam: Será que estamos realmente a salvar, ou apenas a aprisionar?
O Mito do “Final Feliz”
A narrativa que nos contam é bonita: o cão é recolhido, tratado e, pouco depois, adotado por uma família amorosa. Mas a realidade em Portugal e outros países é brutalmente diferente.
Os Centros de Recolha Oficial (CROs) e as associações estão a rebentar pelas costuras. Não há espaço. Não há recursos. O destino da grande maioria destes cães — especialmente se forem adultos, de porte grande ou sem raça definida — não é um sofá quente. É uma “box” de cimento, fria e húmida. É o barulho ensurdecedor de centenas de outros cães em stress. É a solidão de anos a ver o mundo através de grades.
Muitos destes cães passam o resto da vida à espera de uma adoção que nunca acontece.
Se o Cão Pudesse Escolher…
Vamos colocar-nos no lugar do animal. O que é “vida” para um cão? Para nós, humanos, segurança e conforto são prioridades. Mas para um cão, a vida é cheirar, explorar, correr, socializar, escolher onde dormir e o que fazer.
Ao retirarmos um cão saudável e adaptado da rua para o colocarmos num canil sobrelotado, estamos a roubar-lhe o seu bem mais precioso: a liberdade.
Se déssemos a escolher a esse cão:
- Viver numa jaula de 2 metros quadrados, com comida garantida, mas sem estímulos e sem saída, durante 10 anos?
- Ou viver na rua, sujeito aos riscos do trânsito e do tempo, talvez vivendo menos tempo, mas vivendo à sua maneira, livre e dono do seu nariz?
É muito provável que a maioria escolhesse a liberdade. Uma vida curta e livre vale muitas vezes mais do que uma vida longa atrás das grades.
A Realidade dos Números: Recolher Todos é Impossível
Há um dado que ignoramos frequentemente: cerca de 70% a 75% da população canina mundial é errante. Eles vivem livres. A ideia ocidental de que todo o cão tem de ter um dono e viver dentro de um apartamento é, na verdade, a exceção, não a regra biológica.
Tentar recolher todos os cães de Portugal para abrigos é matematicamente impossível e financeiramente insustentável. Continuamos a gastar milhões em infraestruturas que enchem no dia seguinte, sem resolver o problema de fundo.
A Solução: CED (Capturar, Esterilizar, Devolver)
Então, o que podemos fazer? Devemos deixá-los reproduzirem-se descontroladamente? Não.
A solução ética e viável passa por mudar o paradigma. Em vez de “Capturar e Prender”, devemos apostar massivamente no método CED:
- Capturar o animal;
- Esterilizar (e vacinar/desparasitar);
- Devolver ao seu território de origem.
Um cão esterilizado, vacinado e monitorizado pela comunidade (o chamado Cão Comunitário) vive uma vida tranquila. Não se reproduz, não entra em lutas territoriais com a mesma frequência e mantém o seu espaço, impedindo que outros cães não esterilizados ocupem o lugar.
Conclusão: O Verdadeiro Bem-Estar
O verdadeiro bem-estar animal não é projetar os nossos desejos humanos no cão. É respeitar a natureza dele.
Há cães que nasceram para o sofá e não sobreviveriam um dia na rua. Mas há milhares de cães que, ao serem colocados num abrigo, entram em depressão profunda. “Salvar” não pode ser sinónimo de condenar a uma vida sem qualidade, sem escolha e sem cor.
Da próxima vez que pensarmos na “solução” para os cães de rua, lembremo-nos: uma gaiola dourada continua a ser uma prisão. Talvez esteja na hora de aceitarmos que alguns cães são mais felizes sendo simplesmente cães, livres no mundo, com a nossa ajuda, mas sem as nossas correntes.
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